sábado, 27 de novembro de 2010

UM PASSEIO SOCRÁTICO
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Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos dependurados em telefones celulares; mostravam-se preocupados, ansiosos e, na lanchonete, comiam mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia outro café, muitos demonstravam um apetite voraz. Aquilo me fez refletir: Qual dos dois modelos produz felicidade? O dos monges ou o dos executivos?
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Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: Não foi à aula? Ela respondeu: Não; minha aula é à tarde. Comemorei: Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir um pouco mais. Não, ela retrucou, tenho tanta coisa de manhã... Que tanta coisa?, indaguei. Aulas de inglês, balé, pintura, piscina, e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: Que pena, a Daniela não disse: Tenho aula de meditação!
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A sociedade na qual vivemos constrói super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas muitos são emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram que, agora, mais importante que  o QI (Quociente Intelectual), é a IE (Inteligência Emocional). Não adianta ser um super-executivo se  não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!
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Uma próspera cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em  relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: Como estava o defunto?. Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite! Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
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Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega AIDs, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizi­nho de prédio ou de quadra!
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Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos  virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais?
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A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito.  
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Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é ?entretenimento?; domingo, então, é o dia nacional da imbecilidade coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: Se tomar este refrigerante, vestir este  tênis,­ usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá! O problema é que, em geral, não se chega!
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Quem cede, desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba­ precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose. Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma su­gestão.  Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globo-colonizador, neoliberal, consumista.
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Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima e ausência de estresse.
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Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história  daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se shopping centers. É curioso: a maioria dos shoppings tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...
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Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
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Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer de uma cadeia transnacional de sanduíches saturados de gordura.
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Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: Estou apenas fazendo um passeio socrático. Diante de seus olhares espantados, explico: Sócrates, filósofo grego, que morreu no ano 399 antes de Cristo, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro  comercial de Atenas.
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Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: Estou apenas observando quanta coisa existe, de que não preciso, para ser feliz. (Frei Betto)

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