terça-feira, 3 de março de 2009

Marley com o anel de Salomão e o cigarro de Ganja



O DIA EM QUE TENTARAM MATAR BOB MARLEY Timothy White (1ª Parte)

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Três quartos do século XX já haviam transcorrido quando Bob Marley saiu das favelas sombrias de Kingston, na Jamaica, em 1975, anunciando a ascensão dos párias negros e dos sofredores do gueto, o colapso da Babilônia – o mundo corroído pelos pecados – e a iminência do Apocalipse. A mensagem era tenebrosa e ameaçadora, mas a música que a acompanhava e lhe dava força era alucinantemente inebriante: sons salmodiados em tom vingativo que mais pareciam hinos cabalísticos do Velho Testamento. Era o reggae, a resposta jamaicana a James Brown e Jimi Hendrix. Impregnados de imagens de revolução, saques e incêndios, e da vingança final e selvagem dos povos mais oprimidos do planeta, o reggae cantava uma série de eventos assustadores de inspiração apocalíptica. Marley era indiscutivelmente o Rei do Reggae, e em 1975, acendeu o pavio da bomba com a maior ostentação.

O mais incrível era que Marley conseguiu maior sucesso crítico e comercial com os seus discos nos Estados Unidos e na Europa, onde os jovens brancos sentiam-se fascinados pelo impacto étnico-político e pela agressividade de suas canções reggae. Nessa época, Marley foi aclamado como importante influência musical e sócio-política.

Ainda assim, poucos observadores viam qualquer sentido nos dogmas confusos da religião rastafári pregada por Marley e seus “irmãos” dread, que usavam o cabelo retorcido em longas tranças semelhantes a cordas; parecia-lhes incrível que alguém pudesse acreditar, como os rastas acreditavam, que Hailé Salessié, imperador da Etiópia era Jah, o Deus vivo; que a ganja (maconha) era uma erva sagrada, abençoada pelo próprio Rei Salomão.

O foco principal do reggae era a zona oeste de Kingston, local de algumas das favelas mais sórdidas do hemisfério ocidental – comunidades no sentido literal do termo, construídas sobre montes de lixo. Um pouco mais para o centro da cidade ficava o quartel-general do soberano do reggae, a Casa da Ilha. Era um edifício caiado de branco, com persianas na frente, recuado da rua e abrigado atrás de portões enferrujados.

De início, o ambiente no casarão da Hope Road poderia ser descrito como uma comunidade religiosa não dogmática e hippie, onde abundavam a comida, a erva (ganja), a música e o sexo sem compromisso.

Entre outros, freqüentavam o casarão Bunny Wailer, também conhecido como Neville O’Riley Livingston, amigo de infância de Bob, e um terço dos Wailers originais. Este trio, completado por Winston Hubert MackIntosh, mais conhecido como Peter Tosh, tinha recentemente se separado em decorrência das intrigas alimentadas por Peter, que se ressentia da ascendência de Bob como chefe e compositor principal do grupo.

Outra figura notável da Casa da Ilha era Alan (Skilly) Cole, jogador e treinador profissional de futebol de fama internacional – segundo alguns, tão bom quanto Pelé – e o único dread nos círculos de futebol profissional como membro da equipe do Santos da Jamaica.

Sempre existia um relacionamento intimo e até mesmo simbólico entre os jogadores de futebol jamaicanos, os músicos e os pistoleiros. Mas nunca tinha havido uma combinação tão prestigiosa e forte quanto a de Skilly Cole e Bob Marley; e assim não foi surpresa para ninguém que os pistoleiros envolvidos na disputa entre o Partido Trabalhista jamaicano (LP) e o Partido Nacional Popular (PNP), de orientação democrático-socialista, de Michel Manley, se sentissem atraídos para a intimidade do círculo de Hope Road, completando assim a profana e terrível trindade.

Havia na mitologia egípcia uma esfinge que inspirou aos gregos um animal chamado Quimera. Essa terrível criatura tinha a cabeça de leão, corpo de bode e cauda de serpente. Bob Marley, recém coroado Rei do Reggae, era o leão da quimera jamaicana, Skilly era o bode fogoso, e os pistoleiros eram as serpentes atraídas para o ninho. O casarão de Hope Road estava destinado a ser o local onde todas as maldições e sortilégios, todas as loucuras e sonhos, todos os ódios e horrores que perseguem os sofredores das favelas atingiriam seu clímax para Robert Nesta Marley. Era a hora da Esfinge Negra, da Quimera. Como diziam os rastas, batendo na capa da Bíblia: “A profecia vai realizar-se”.

Mas, como logo se veria, Bob Marley era também o superastro musical mais vulnerável do Terceiro Mundo. Ele simplesmente não sabia como distinguir e selecionar todos os que subitamente o procuravam, nem como avaliar a pressão que eles exerciam sobre o seu tempo disponível e sobre o seu espírito.

Por essa época, a Island Records começou a enviar pequenos grupos de jornalistas a Kingston. Esses grupos eram compostos quase sempre de críticos de rock de raça branca – que pareciam os mais interessados -, mas também haviam uns poucos negros. Estes se ressentiam da altivez dos kingstonianos de classe média e não entendiam o patois. Os brancos tampouco entendiam, mas os negros pelo menos estavam dispostos a sair do hotel para tentar entender. A maioria dos jornalistas brancos descia do avião esperando encontrar uma paisagem bem cuidada, como nas Bermudas. Mas, na viagem de táxi ao longo dos Palisados, ao passarem pela fábrica de cimento e a estação balneária de Rockfort, o que viam os deixavam pálidos de espanto: gente que passava gritando em carroças, favelados importunos, vagabundos adormecidos à beira da estrada; a vegetação retorcida que fazia rachar e erguer o piso irregular das calçadas ou crescia no telhado dos casebres.

Ao chegar ao hotel, os jornalistas encontravam arame farpado e cães de guarda na entrada. Eram abordados, antes de atravessarem a cerca, por três ou quatro rapazolas desdentados, manuseando facas de lâmina retrátil. A esta altura, os jornalistas estavam prontos para subir correndo para o quarto e reservar um lugar seguro no primeiro avião que os levassem para longe daquela ilha. (continua)

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