sexta-feira, 25 de setembro de 2009

TRABALHO
-
Em nossa sociedade, trabalho é identificado com emprego; é executado para um patrão e por dinheiro; as atividades não-remuneradas não são consideradas trabalho. Por exemplo, não se atribui qualquer valor econômico ao trabalho executado por mulheres e homens no lar; entretanto, esse trabalho corresponde, em termos monetários, a dois terços do montante total de salários pagos por todas as grandes companhias dos Estados Unidos. Por outro lado, o trabalho remunerado deixou de ser acessível a muitos que o querem. Estar desempregado acarreta um estigma social; as pessoas perdem status e o respeito próprio e alheio, quando são incapazes de conseguir trabalho.
Ao mesmo tempo, aqueles que têm empregos vêem-se freqüentemente obrigados a executar trabalhos em que não sentem nenhuma satisfação, trabalhos que os deixam profundamente alienados e insatisfeitos. Como Marx claramente reconheceu, essa alienação deriva do fato de que os trabalhadores não detêm os meios de produção, não são ouvidos acerca do uso que é dado ao seu trabalho e não podem identificar-se de qualquer maneira significativa com o processo de produção. O moderno trabalhador industrial não se sente mais responsável pelo seu trabalho, nem se orgulha dele. O resultado são produtos que mostram cada vez menos perícia, qualidade artística ou gosto. Assim, o trabalho tornou-se profundamente degradado; do ponto de vista do trabalhador, seu único objetivo é ganhar a vida, enquanto a finalidade exclusiva do empregador é aumentar os lucros.
A ausência de responsabilidade e de satisfação, aliada à obtenção do lucro como objetivo principal, criou uma situação em que a maior parte do trabalho executado hoje em dia é antieconômico e injustificado. Como declarou expressivamente Theodore Roszak:

“O trabalho que produz quinquilharias desnecessárias ou armas de guerra é errado e esbanjador. O trabalho que se apóia em falsas necessidades ou apetites indesejáveis é errado e esbanjador. O trabalho que engana ou manipula, que explora ou degrada, é errado e esbanjador. O trabalho que fere o meio ambiente e torna o mundo feio é errado e esbanjador. Não há meio nenhum de redimir esse trabalho enriquecendo-o ou reestruturando-o, socializando-o ou nacionalizando-o, tornando-o “pequeno”, ou descentralizado ou democrático”.

Este estado de coisas está em profundo contraste com as sociedades tradicionais em que mulheres e homens comuns se dedicavam a uma grande variedade de atividades – agricultura, caça, pesca, tecelagem, confecção de roupas, construção, fabricação de louças e ferramentas, culinária, arte de curar –, todas elas úteis, dignas e proveitosas. Em nossa sociedade, a maioria das pessoas estão insatisfeitas com o trabalho que fazem e vêem a recreação como o principal objetivo de suas vidas. Assim, o trabalho tornou-se o oposto do lazer, que é servido por uma gigantesca indústria concentrada na produção de aparelhos que consomem recursos e energia – jogos eletrônicos, barcos de corrida, trenós e patins – e que exorta as pessoas a um consumo cada vez mais esbanjador.
No que se refere ao status das diferentes espécies de trabalho, há uma interessante hierarquia em nossa cultura. O trabalho com status mais baixo tende a ser o mais “entrópico”, isto é, aquele em que a evidência tangível do esforço é mais facilmente destruída. Trata-se do trabalho feito repetidamente, sem deixar um impacto duradouro – preparar refeições que são imediatamente consumidas, varrer o chão das fábricas, que logo estará sujo de novo, cortar sebes e gramados que não param de crescer. Em nossa sociedade, como em todas as culturas industriais, às tarefas que envolvem um trabalho altamente entrópico – serviços domésticos, serviços de reparações e consertos, agricultura – é atribuído o mais baixo status, e são elas as atividades a que são destinados os mais baixos salários, embora todas sejam essenciais à nossa existência cotidiana. Esses trabalhos são geralmente confiados a grupos minoritários e a mulheres. Os trabalhos com status mais elevado envolvem tarefas que criam algo duradouro – arranha-céus, aviões supersônicos, foguetes espaciais, ogivas nucleares e todos os outros produtos de alta tecnologia. É também concedido um status elevado a todo trabalho administrativo ligado à alta tecnologia, por mais enfadonho que possa ser.
Essa hierarquia de trabalho é exatamente a inversa à das tradições espirituais. Aí, o trabalho de elevada entropia é altamente apreciado e desempenha um papel significativo no ritual cotidiano da prática espiritual. Os monges budistas consideram a culinária, a jardinagem ou o asseio da casa parte de suas atividades meditativas, e os frades e freiras cristãos têm uma longa tradição na agricultura, na enfermagem e em outros serviços. Parece que o alto valor espiritual atribuído ao trabalho entrópico nessas tradições provém de uma profunda consciência ecológica. Executar um trabalho que tem de ser feito repetidamente ajuda-nos a reconhecer os ciclos naturais de crescimento e declínio, de nascimento e morte, e a adquirir, portanto, consciência da ordem dinâmica do universo. O trabalho “ordinário”, como o significado radical da palavra indica, está em harmonia com a ordem que percebemos no meio ambiente natural.
Tal consciência ecológica perdeu-se em nossa cultura atual, onde o valor mais alto foi associado ao trabalho que cria algo “extraordinário”, algo fora da ordem natural. Não surpreende que a maior parte desse trabalho altamente valorizado esteja agora gerando tecnologias e instituições extremamente perniciosas para o meio ambiente natural e social. O que se faz necessário, portanto, é rever o conceito e a prática de trabalho de tal maneira que se torne significativo e gratificante para cada trabalhador, útil para a sociedade e parte da ordem harmoniosa do ecossistema. Reorganizar e praticar nosso trabalho desse modo permitir-nos-á reconquistar sua essência espiritual. (Fonte: O Ponto de Mutação – Fritjof Capra)

Nenhum comentário: